Há algum tempo eu queria falar em primeira pessoa, expor o que vem à cabeça, ter a liberdade de apenas escrever sem arrogância textual e cobrança estrutural.
Há algum tempo queria ter a minha coluna, não por vaidade, mas para compartilhar o que tenho vivido no universo gastronômico. Na verdade, estava me sentindo egoísta em não escrever sobre os momentos íntimos de pensamentos e vivências.
Há algum tempo, especificamente há um ano, acompanhei o processo de criação de um prato. Sabia que existia um estudo, já havia lido em algum livro, acho que foi o El Celler de Can Roca ou outro editorial com desenhos do processo de desenvolvimento.
Sempre soube que era uma etapa altamente importante; se mal executada pode matar a criação – adeus a todo trabalho. Ou pode ajudar para que a preparação seja um sucesso. É possível durante o processo avaliar a combinação dos sabores, texturas e estética.
Em abril do ano passado, durante algumas semanas, passei a receber desenhos pelo WhatsApp. O primeiro foi um esboço, engraçado porque quem me enviou é hábil com as panelas e não com desenhos. Naquele momento ainda não conseguia enxergar o prato. Até os nomes de alguns ingredientes soavam estranhos, como a língua de vaca (planta).
Por algumas semanas recebia a evolução dos desenhos. Tá achando que criar um prato é fácil? Ali, eu tive a certeza que não era mesmo! Pesquisas sobre os ingredientes, métodos de preparo, estudos culturais e muita dose de criatividade e senso estético. Ah, até a escolha do prato tem que ser pensada e avaliada. Não adianta tanto esforço para servir em uma superfície qualquer.
No entanto, um chef não cria apenas um prato ou uma experiência sensorial para o comensal. Ele promove e democratiza a história por detrás de um ingrediente. É capaz de mudar a vida de produtores, além de evitar a extinção de alimentos, promover mudanças na legislação e criar um cenário gastronômico mais patriota.
Quando acompanhei a criação do prato “Clandestino: ingredientes tradicionais e ilegais”, do chef Caco Marinho, notei o quanto um profissional de gastronomia precisa pesquisar, ler e conhecer os alimentos. Por exemplo, além de chef, o Caco é pesquisador e ativista. O prato que ele criou foi uma forma de manifesto, denunciando a produção dos alimentos que utilizou.
“Alguns ingredientes, por não atenderem requisitos legais, baseados nos padrões industriais de larga escala, são comercializados de maneira irregular e muitas vezes isso termina em apreensão das mercadorias e em severas punições ao produtor.”, trecho da apresentação do chef no Mesa ao Vivo Bahia do ano passado.
Entre os ingredientes do prato estão a carne de fumeiro de Maragogipe, que corre risco do seu tradicional método de defumação ser extinto. Há o queijo coalho de leite cru de cabra, que não está regulamentado para ser vendido pelo estado e país. Também há o mel de abelha Mandaçaia, que a Bahia foi o primeiro estado a regulamentar a produto, além do licuri, um coquinho da caatinga super nutritivo e subutilizado na culinária. E o nome que soou estranho para mim era uma PANC (planta alimentícia não convencional), língua de vaca.
O resultado do prato é este:
RECEITA: Clandestino: Ingredientes Tradicionais e Ilegais
Ingredientes
600g de Carne de Fumeiro de Maragogipe
400g de Queijo Coalho de Cabra, de Leite Cru, da Caatinga
60ml de Mel de Mandaçaia
Pimenta Malaguetinha vermelha a gosto
400g de Aipim “Manteiga” descascado
120g de Licuri torrado
200g de “Língua de Vaca”
Folhas de Couve Q. B.
Manteiga de Garrafa Q. B.
Farinha de Mandioca Q.B.
Água Q.B.
Preparo
Forre a panela de barro com uma camada grossa de folhas de couve. Adicione a carne de fumeiro e o aipim descascado e unte-os com manteiga de garrafa. Feche a panela com a tampa e sele qualquer possível abertura com massa feita de farinha de mandioca e água;
Leve ao forno pré-aquecido a 125°C, considerando a marcação do meio, de um forno caseiro que alcance 250°C, e deixe cozinhar por 2 horas. Enquanto o fumeiro cozinha e hidrata na panela, triture o licuri no liquidificador até deixá-lo fino como uma farinha e reserve. Triture, também, a pimenta e o mel e reserve.
Toste o queijo de cabra até deixá-lo com uma bonita crosta dourada. Passe a “língua de vaca” rapidamente na manteiga de garrafa quente e tempere com sal. Inicie a montagem do prato.
Finalização
Lasque pedaços, de mesmo tamanho, do fumeiro e do aipim. Monte o fumeiro sobre a “língua de vaca e o aipim e o queijo, lado a lado e nessa ordem, em uma louça rasa, com espaçamento de 1,5cm.
Entre um e outro derrame o molho de mel e pimenta. Adicione ao lado a farinha de licuri com uma colher de sobremesa. Decore com flores de biri biri ou de carambola e sirva.
Rendimento: 4 porções.