“O português com seu gênio de assimilação trouxera para sua mesa alimentos, temperos, doces, aromas, cores, adornos de pratos, costume e ritos de alimentação das mais requintadas civilizações do Oriente e do Norte da África. Esses valores e esses ritos se juntaram a combinações já antigas de pratos cristãos com mouros e israelitas (…)”.
(Gilberto Freyre in Manifesto Regionalista,1926.)
Um dominante conceito de mundialização está em Gilberto Freyre, especialmente quando se trata das comidas, dos seus processos culinários e dos rituais de servir e de comensalidade; pois ele escolheu a comida, e seus complexos processos e símbolos, como um dos seus mais estimados métodos para interpretar o brasileiro.
Gilberto sempre notabilizou o homem muçulmano (mouro) na formação brasileira, e na construção da civilização Ibérica, principalmente nas bases culturais e sociais de Portugal.
Desta maneira, o nosso colono oficial português já trazia uma formação afro-islâmica que estava presente na comida, na estética, no idioma, na música, na arquitetura; e em tantos outros temas que marcantes que determinaram as nossas características de povo.
Dessas tradições luso-muçulmanas, chegam elaboradas técnicas culinárias, ingredientes, receitas; e a valorização estética das comidas e dos utensílios da mesa, havendo uma grande importância nos rituais da comensalidade. Tudo isso passa a marcar os nossos hábitos e preferências alimentares, e consequentemente na formação de nosso paladar.
É o caso do tão querido e popular “roz bil halibi”, o nosso arroz doce. Sobremesa do cotidiano, comum, que pode ser enriquecida com leite de coco, raspas de limão, gemas de ovos; e, muita, muita canela para enfeitar o prato, para dar gosto e cheiro.
O arroz, ainda quente, na travessa ou prato, é pulverizado com a canela, que exala o perfume do Oriente. Canela vinda do Ceilão, da Índia. E o açúcar, sim, muito açúcar, pois, tradicionalmente a nossa doçaria é muito doce, nossos preparos são dulcíssimos, o que afirma uma civilização dominante da cana sacarina no Brasil.
Assim, o nosso arroz doce, cujas receitas nacionais nascem da tradição do norte da África, aproxima-se também de outros processos culinários como misturar o leite, o arroz e o açúcar, na milenar e tradicional cozinha indiana; com o pongal ou makar-sankranti e o kheer, pratos oferecidos no festival Jyaishtha Ashthami.
A canela possibilita criar no arroz doce elementos visuais, desenhos, numa estética para ser saboreada. Ainda, pode-se realizar desenhos impressos com o uso da técnica do ferro quente colocado sobre camadas generosas de canela [o que faz exalar o aroma dominante que anuncia o doce, o prazer da comida doce]. Lembrança do delicioso crème brulee; também alvo de uma camada crocante feita pelo emprego deste ferro, que é um utensílio culinário especial, ou se pode usar o contemporâneo maçarico culinário. Gilberto Freyre também é um apreciador declarado do arroz doce feito com leite, baunilha, açúcar, e muita canela.
Falo agora das minhas lembranças familiares que se repetem sobre grandes travessas de louça, branca e grossa, que recebem o generoso arroz doce, úmido, quase papa, pontuado também com cravos da Índia, além de um banho intenso de canela.
As receitas tradicionais do arroz doce da cozinha Magreb traz também o maa al wared –essência aromática de água de rosas –, e/ou o maa el zahar – essência aromática de água de flor de laranjeira –, o que adiciona aromas e sabores especiais. É uma assinatura da África muçulmana e mediterrânea.
Trago uma receita do “roz bil hahlib” do Norte da África que atesta uma sofisticada cozinha, coerente ao que há de mais contemporâneo e “fashion” na gastronomia globalizada.
- 1000ml de leite, 1chícara de chá de arroz, 500g de açúcar, 1 colher de água de flor de laranjeiras ou de rosas. Pistache, nozes ou amêndoas, violetas ou rosas cristalizadas. Modo de fazer: aqueça ½ litro de leite, e depois coloque o arroz. Sempre mexendo até que esteja muito bem cozido. Agora acrescente o restante do leite, que deve estar pré-aquecido, o açúcar e continue cozinhando lentamente em fogo baixo até o leite secar; aí, então, misture a água de flor de laranjeira ou de rosas. Ainda quente, coloque no prato ou travessa, acrescente os pistaches, as nozes ou amêndoas, e as violetas ou rosas cristalizadas.
No caso brasileiro, há muitas receitas de arroz doce que não incluem tais essências aromáticas. Contudo, alguns mingaus de milho branco e de carimã, do Recôncavo da Bahia, têm incluídos nos seus preparos a água de flor de laranjeira.
Sem dúvida, a matriz africana é diversa e está além do dendê, ou das pimentas, pois, a ampla doçaria da costa mediterrânea da África espalhou-se pela Europa, e está na nossa mesa brasileira enquanto memória formadora dos nossos costumes e das nossas escolhas alimentares.
Fonte: Brasil Bom de Boca – Raul Lody.
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