Lembro-me como hoje sentada na porta de casa, aos cinco anos de idade com meu irmão e meus primos, rodeada de espécies diferentes de animais, inclusive um pato chamado Humaitá – bravo, robusto, bicava todo mundo que encontrava pela frente, menos eu. Acredito que ele sabia o quanto eu o admirava, mas morria de medo dele.
Era uma casa simples no bairro da Liberdade na capital baiana, década de 1980, com amplo quintal para brincarmos, tinha pé de abacate, pé de carambola, pé de manga era uma festa. Toda sexta-feira, às 18 horas em ponto, ao entardecer esperávamos minha avó preparar uma das receitas mais simples e saborosas do Nordeste brasileiro: Mungunzá. Para mim aquele momento único, mágico, era um espetáculo.
A rádio sintonizada na Piatã FM para escutar a música Ave Maria. Faltando poucos minutos para 18 horas, um incensador improvisado feito com lata de alumínio feito por ela com mirra, ervas secas e flores da árvore de alfazema, que tinha um pé em frente de casa. Ela cantarolava em outra língua que eu não entendia muito bem.
Chega o ápice da espera do mungunzá. Aos poucos a imagem de minha avó surgia detrás daquela cortina de fumaça cheirosa de flores e mirra, que embalava a gente com sua cantiga e o aroma torneava a casa de dentro para fora, jogando aquela energia para todos os lados. A minha consciência infantil imaginava que Dona Tuca, minha avó, era uma deusa poderosa, que vinha sabe lá de onde, para preparar o nosso mungunzá. Caiamos na farra para tentar pegar a fumaça. Coisa de criança.
Enquanto ouvia-se Ave Maria na rádio, minha avó cantava baixinho em Ioruba (dialeto africano) para saudar seu candomblé de nação Ketu-angola e o seu orixá Oxalá, também conhecido como Obatalá (considerado pai dos orixás). Na religião de raiz africana, o Oxalá se apresenta com várias qualidades, as duas principais são: Oxaguiã, mais jovem e o mais velho Oxalufã. No sincretismo afro católico, na Bahia, o Oxalá é representado pelo Senhor do Bonfim.
Hoje entendo toda aquela magia que nos envolvia e o quanto o sincretismo religioso faz parte do cotidiano dos baianos. Eu não sabia que existia todo um significado para aquele exato momento. A junção da fé católica aos orixás africanos. O alimento é o elo de ligação entre os deuses africanos com o homem e o mungunzá representa essa ligação. Ele é preparado a partir de três ingredientes principais: milho branco, leite do coco e açúcar.
Mas porque Dona Tuca servia milho branco apenas na primeira sexta-feira de cada mês? No meu tempo imaginário de criança pensava que era toda semana, pois era apenas na primeira sexta-feira de cada mês para saldar seu orixá, o Oxalá. O milho branco é um dos principais ingredientes para fazer a comida desta divindade. No candomblé todo alimento servido para os deuses são compartilhados com todos dentro do terreiro até mesmo com os visitantes, assim é dividido o axé.
A purificação através da fumaça são usados desde os povos mais antigos em rituais sagrados para abluir o ambiente, afastando energias negativas, abençoado a todos. Defumação às 18 horas tem um propósito, já dizia nas escrituras do livro de São Cipriano (um alquimista que durante muito tempo foi perseguido pela igreja católica como feiticeiro. Ele foi estudioso das ciências ocultas que viveu 250 d.C. na Antioquia, região situada entre a Síria e a Arábia. Depois ele se tornou santo católico).
As horas abertas são divididas em 4 partes: começa às 6 da manhã, meio dia, 18 horas e a meia noite) são chamadas de horas abertas, porque esta é a hora das transições dia e noite é um momento muito poderoso.
O mungunzá é uma a palavra de origem africana, vem do dialeto Kimbundo, é uma iguaria tipicamente nordestina muito consumida em todo Brasil. Existem duas versões: a doce (tradicional) e a versão salgada do Ceará com carne de fumeiro e linguiça.
No candomblé da Bahia esse alimento sagrado é distribuído especificamente nas festas da lavagem do Nosso Senhor do Bonfim pelo povo de santo, dos terreiros que tem promessas ou fundamentos com Oxalá.
Na nação Jeje-Nagô existe um prato semelhante, cujo também recebe nome de muncunzá ou ebô que é uma comida exclusiva de ritual. O mungunzá recebe outros nomes e modos de preparos diferentes em outras cidades brasileiras, no sul e sudeste sendo conhecido como canjica, curau e milho doce. Cada pessoa tem sua história com a comida e essa é a minha. Aproveito para dividir com você essa receita secular e ancestral que é o mungunzá.
INGREDIENTES
500 gramas de milho branco
1 coco seco grande
1 xícara de açúcar
Pitada de sal
1 litro de água filtrada
2 paus de canela
Canela em pó
4 cravos da índia
PREPARO
Agora vem a melhor parte, como fazer: o milho deverá ficar hidratando em água durante uma noite para que fique macio. Após o tempo indicado, troque a água para cozinhar o milho na panela de pressão com 2 litros de água limpa durante aproximadamente 45 minutos.
Enquanto isso vou te ensinar fazer o verdadeiro leite de coco, mas se você tiver preguiça de preparar com o coco natural, então fique à vontade e compre sua garrafinha industrial. Vamos lá, quebre o coco seco, retire sua casca dura com auxílio de uma faca pontiaguda.
Em seguida, descasque a parte marrom que cobre a parte branca do coco até ficar totalmente branca (sei que é um trabalho manual pesado, porém o resultado final recompensa).
Depois de descascar o coco, corte em cubos e bata no liquidificador com 1 litro água até virar um suco de coco. Dica: acrescente a água aos poucos. Coe esse leite de coco apertando bem o bagaço até ter certeza que não contém mais água nele, pois iremos usá-lo. Reserve o leite de coco.
Com o milho branco já cozido, retire a água e acrescente o leite de coco, açúcar, pitada de sal, um punhado do bagaço do coco, aquele que sobrou quando fez o leite do coco, cravo e canela em pau. Deixe cozinhar por mais 10 minutos para apurar o sabor e, então mexa até o caldo engrossar. Pronto! Para finalizar, polvilhe a canela em pó e pode servir!