“A luta que nossos amigos brasileiros travam nesses dias preocupa a todos nós.
Mais uma vez, os interesses econômicos individuais de grandes investidores querem se
impor sobre o bem comum e a saúde do planeta. Esta é uma proposta que vai contra
o conceito de soberania alimentar que não podemos nem devemos aceitar”
Carlo Petrini, presidente e fundador do Slow Food, sobre o pacote do veneno
No próximo 29 de maio o Senado Federal irá votar o Projeto de Lei (PL) 6.299/02, também conhecido como pacote do veneno (pois apensa outros 29 PLs). Ele pretende desmontar o sistema normativo regulatório de agrotóxicos no Brasil, flexibilizando a legislação atual, acelerando o processo de registro e eliminando órgãos técnicos dos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente do processo de avaliação e seus respectivos poderes de veto para liberação comercial, dentre outras providências.
A proposta, tende a piorar um cenário muito ruim. Detemos o título de maior consumidor de agrotóxicos do mundo desde 2009, ano em que foram despejados 1,06 milhão de toneladas de agrotóxicos nas lavouras do país (segundo estimativas do SINDAG – Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola). A permissividade em relação a presença de agrotóxicos no país está também relacionada à produção agrícola de transgênicos, uma vez que o principal tipo de modificação genética difundido em terras brasileiras é para que as plantas se desenvolvam mesmo recebendo doses letais de herbicidas.
Para se ter um parâmetro, dos 504 ingredientes ativos autorizados, 149 estão proibidos na União Europeia por apresentar riscos à saúde. Dentre os agrotóxicos de grande impacto sobre a biodiversidade estão também os neonicotinóides, uma classe de inseticida com efeito neurotóxico, que é relacionados à morte massiva de abelhas. As abelhas são reconhecidas por serem uma das principais polinizadoras, sendo responsável pela reprodução de ⅓ das plantas alimentícias em todo mundo.
O uso indiscriminado de agrotóxicos está intimamente relacionado ao modelo político e produtivo adotado na agricultura. O modelo vigente, estabelecido mundialmente há 70 anos sob o pretexto de ‘acabar com a fome do mundo’ é responsável pela extinção de ¾ da biodiversidade alimentar, extinguindo também as culturas a elas atreladas, homogeneizando os ecossistemas e achatando as culturas em prol da produção massiva de matérias primas para exportação em monoculturas de larga escala (commodities). Para compensar os desequilíbrios causados pela falta de biodiversidade, são necessários diversos artifícios como os agrotóxicos e as sementes que dependam de tais substâncias para o desenvolvimento. No país mais megabiodiverso do planeta (onde ocorrem 10% das plantas comestíveis – cerca de 3 mil espécies) e um dos mais sociodiversos, a tônica deveria ser totalmente oposta. Ao invés de valorização da biodiversidade alimentar e sociocultural, há supressão, opressão e repressão sistemáticas marginalizando fazeres e saberes que não estejam adequados ao modelo.
Atualmente um dos grandes incentivos ao uso dessas substâncias tem marco legal em 2011, com o Decreto 7.660 que estipula isenções tributárias sobre produção e comercialização desses produtos. Além disso há diversos outros tipos de estímulos para que se use cada vez mais agrotóxicos contrariando a própria constituição federal que assegura o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e o direito de viver em um meio ambiente saudável, motivos pelos quais há uma ação direta de inconstitucionalidade sobre o decreto.
O Slow Food apoia há décadas o modelo agroecológico e entende que esta é uma alternativa viável, necessária e urgente que possibilita a redução de agrotóxicos enquanto se mantém ou aumenta a produtividade, além de favorecer a regeneração ambiental e promover a justiça social. Compreendemos que não é possível banir repentinamente todos os agroquímicos em uso atualmente pois temos uma agricultura químico-dependente. Por isso são necessárias políticas públicas que fomentem a transição agroecológica e reduza os subsídios aos agrotóxicos e ao modelo baseado no pacote tecnológico da Revolução Verde (que aprofunda as injustiças socioambientais, alimentares e agrárias). Um ganho recente na luta contra os agrotóxicos é a instalação de uma comissão especial para avaliar a PNARA (Política Nacional de Redução de Agrotóxicos).
O uso de agroquímicos não é mais uma questão especificamente relacionada à produção agrícola mas é também um problema de saúde pública. Segundo dados do Ministério da Saúde, em média ocorrem cerca de 5 mil intoxicações agudas por agrotóxicos, uma reação causada pelo contato direto com o agroquímico. Intoxicações crônicas geralmente não são contabilizadas uma vez que surgem após anos de exposição a baixas doses. Estimativas da Organização Mundial da Saúde indicam que a cada caso de intoxicação notificada, outras 50 deixam de ser registradas.
Aderimos ao Manifesto Contra o Pacote do Veneno que conta com centenas de organizações e coletivos para denunciar os problemas dessa proposta. Diversos órgãos e organizações de atuação nacional publicaram individualmente seus posicionamentos contrários à proposta tais como a ABA (Associação Brasileira de Agroecologia), ANVISA (Agência Nacional de Viigilância Sanitária), CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), INCA (Instituto Nacional do Câncer), Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), MPT(Ministério Público do Trabalho), MPF (Ministério Público Federal), DPU (Defensoria Pública da União), SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
Algumas das mudanças notáveis da proposta são:
– Substituição do termo “agrotóxico” para o uso de “defensivo fitossanitário”, podendo confundir a população e tirar a força e sentido que o termo “agrotóxico” tem.
– Fiscalização e registro de novos agrotóxicos, uma função hoje compartilhada entre IBAMA, ANVISA e Ministério da Agricultura. O PL prevê que esta responsabilidade fique apenas a encargo do Ministério da Agricultura, este dirigido por Blairo Maggi, autor da proposta e maior produtor individual de soja no mundo.
– Alteração de termos que especifiquem a proibição de substâncias conhecidamente carcinogênicas (causadoras de câncer), mutagênicas (causadoras de mutações) e teratogênicas (causadoras de má-formação fetal), por aquelas que causam “risco inaceitável”, subjetificando o entendimento sobre o que é aceitável ou não. O princípio da precaução nos deve nortear para que nenhum risco à integridade da população seja aceitável.
– Impede estados e municípios a terem legislações mais restritivas do que a federal.
Manifestação contra o PL do Veneno durante a Virada Cultural 2018. Foto: Mídia Ninja
As escolhas alimentares que fazemos individualmente é de grande relevância para fomentar um outro modelo de produção, mas a mobilização popular é parte essencial da pressão para reverter o cenário atual. Uma das iniciativas ocorridas com a participação de ativistas do movimento Slow Food e outros coletivos foi o ato articulado pela chef Bel Coelho no show do bloco Tarado Ni Você, com participação de Caetano Veloso, durante a Virada Cultural ocorrida na capital paulista no último fim de semana. A repercussão midiática sobre o ocorrido oxigena a luta pelo direito a uma agricultura e alimentação livres de agrotóxicos. A promoção da vida e da sociobiodiversidade devem ser prioritários na produção de alimentos!
Fonte: Slow Food Brasil.