Mulher, cientista, escritora, professora, doutora em Química Orgânica, Paulina Mata (63), radicada em Lisboa, é a coordenadora do curso de Ciências Gastronômicas da Universidade Nova de Lisboa em parceria com a Universidade de Lisboa, além de docente das cadeiras de Química do Alimento e Gastronomia Molecular. Sua paixão por gastronômia a levou escrever o livro “A Cozinha é um Laboratório” (coautora) e compartilhar suas vivências com grande entusiasmo no blog “Assins e Assados”. Por sua dedicação e contribuição à gastronomia, já foi homenageada no Congressos dos Cozinheiros, um dos principais eventos do segmento em Portugal. Hoje é reconhecida no meio de grandes chefs de cozinha e críticos gastronômicos. Paulina é para nós, acima de tudo, uma refêrêcia de super mulher.
Em qual momento da sua carreira a gastronomia passou a ser um objeto de estudo dentro da química?
R: Quando tinha 24 anos queria cursar a escola de Hotelaria de Lisboa, mas me disseram que eu já estava muito velha (risos). Eu sempre gostei muito de cozinhar. Acabei fazendo alguns pequenos cursos em lojas e por volta de 2004, em contato com a Instituição Ciência Viva participei de eventos e divulgações voltados à ciência utilizando a cozinha como base. Eu e a a professora Margarida Guerreiro, parceira de trabalho, fizemos programas de televisão e escrevemos em fóruns de discussões, como Nova Crítica. Conheci os principais jornalistas da área que abriram espaço para eu escrever no blog Mesa Marcada. E após todo esse envolvimento com profissionais da gastronomia surgiu a proposta para coordenar um curso de Ciências Gastronômicas, aqui em Portugal.
A senhora se considera uma autodidata nessa formação da “gastro-química” (inventei essa palavra agora)?
R: Sim, mas não propriamente autodidata porque eu acho que autodidata são pessoas que não tem formação. E eu tinha uma formação em Engenharia Química, Mestrado e Doutorado em Química Orgânica e, portanto, li, aprendi, cozinhei e fui estabelecendo as relações: “de paladar eu sei tudo” (risos), agora fazer é bem diferente.
Hoje, após alguns anos no segmento, qual a sua opinião sobre a importância dos estudos em química na gastronomia? E como esses estudos mudaram a forma de produção alimentar, sobretudo dentro de uma cozinha de restaurantes?
R: Eu não acho que os cozinheiros precisam ser químicos, mas acho importante que eles entendam os processos de como funcionam as proteínas, os açúcares, os lipídeos por exemplo. Porque isso permite que os profissionais além de saberem as consequências das técnicas utilizadas nos preparos alimentares, que influi também no processo criativo, não se deixem levar por “modismos”, conversas pouco fundamentadas por falta de informação, por exemplo, do que se faz bem para a saúde ou mal e a terem principalmente opinião. Eu acho que em tudo na vida saber mais permite fazer melhor de forma mais eficiente: de fato a comida são moléculas a interagir com compostos químicos, ocorrendo alterações e, portanto, é importante entender minimamente o que está fazendo em um processo de produção em cozinha.
Sobre o Mestrado de Ciências Gastronômicas, quando ele surgiu?
R: O curso de Ciências Gastronômicas na UNL/UL começou em 2009 como pós-graduação e no ano seguinte já obtivemos o crédito como mestrado.
Quais competências adquiridas pelos estudantes cozinheiros no mestrado e qual o principal diferencial do curso?
R: Os alunos aqui formados desde então levam uma bagagem que vai desde os componentes emocionais, artesanais e culturais que muitas vezes na ciência se perde, porque não pode só olhar para as panelas e as moléculas e ver o que acontece. É conhecimento holístico que faz o diferencial do nosso curso ir além. Tentamos ensinar desde as técnicas mais tradicionais e muitas vezes mais complexas até as mais modernas técnicas de cozinha de forma prática e sistêmica. Por exemplo eu posso dar a parte de hidrocolóides, que são espessantes na cozinha, mas se não houver prática os cozinheiros não sairiam com a mínima noção de aplicação.
Sobre o desenvolvimento da Gastronomia Brasileira como elemento cultural, símbolo de identidade, relacionada com a estratégia educacional. Qual o grande diferencial da Europa?
R: Eu não sei comparar assim porque o meu conhecimento sobre o Brasil é limitado para um país tão grande. O que eu vejo nos alunos brasileiros é uma curiosidade e uma vontade de aprender maior das que eu vejo aqui, atualmente eu trabalho para os brasileiros. Eu vejo alunos que passaram aqui sendo bons professores, fazendo revoluções culinárias, tendo programas de televisão (por exemplo a chef Gisela Abrantes, no Rio de Janeiro), nós mantemos o contato com a maioria dos alunos que aqui passaram.
Cientista, professora, escritora doutora em Química Orgânica, a Senhora trilhou um longo caminho para ser uma referência na gastronomia. Durante o sua trajetória proissional houve algum tipo de preconceito, principalmente por ser mulher?
R: Claro que sim. Este desde então era um meio muito fechado para homens e quando comecei a aparecer muita gente não gostou. Eu cheguei a falar uma vez em uma escola de Hotelaria e um chef português muito conhecido levantou-se abruptamente da cadeira e saiu. Outro daqui muito conhecido falou: “eu as detesto, elas entram aqui e pensam que sabem de tudo”. Nós, mulheres, não queremos tirar o lugar de ninguém. Hoje as coisas mudaram, a cozinha é um lugar para todos que querem se qualificar. Uma mulher que eu admiro é a chef Marlene Vieira. Eu não sei ainda como ela não é um nome tão forte aqui. Outra coisa a destacar é que o ego do profissional cozinheiro precisa ser discutido e a forma insustentável que se vem trabalhando em cozinhas. Ninguém aguenta ser maltratado, não está certa essa cultura de trabalho que vem se arrastando por anos, ninguém aguenta aquelas horas em pé: é toda uma atitude que se precisa mudar. Não adianta ter reciclagem e produtos sustentáveis, precisa-se pensar mais nas pessoas e nas relações entre elas. É um passo que deve ser imediato.
E para finalizar, na sua opinião o que deveria mover a carreira dos cozinheiros?
R: Saber mais, saber mais, saber mais e sempre. E também é importante que as cozinhas tenham alma e que não se vá atrás do modismo: agora é a era do oriental – mas porque se muitos cozinheiros não possuem qualquer ligação emocional com o oriente? Uma cozinha deve ter personalidade: não tem que ser tradicional, mas precisa ter um reflexo do percurso de vida do cozinheiro ou de algo marcante. Aí faz sentido: ter significado e conhecimento.
Entrevista e texto realizada por Roberta Costa, cozinheira e colunista jornal Notisul, e Gabrielle Muniz, editora Repórter Gourmet – Texto publicado no Notisul.